Paisagens do nosso contentamento?…

No rescaldo dos dramáticos incêndios de 2017 o governo aprovou uma lei que obriga os proprietários a procederem à limpeza dos seus terrenos. Apesar da algumas regras minimalistas (limpeza num raio de 50 metros de casas isoladas, árvores a uma distância mínima de cinco metros das casas, entre outras) a imagem que passa sempre, e que acaba por se verificar na prática, é a necessidade de uma limpeza geral e completa dos campos, nomeadamente nas situações de casas mais isoladas. Tudo isto transforma os campos num deserto de vegetação natural e consequentemente de vida natural, com um impacto ambiental semelhante ao de um fogo mas sem colocar, no imediato, em risco as vidas humanas.

Fonte: Jornal O Público

Como chegámos aqui?

É importante não nos esquecermos do que nos conduziu até aqui ao longo das últimas décadas. Nos pós 25 de abril a migração, em que, como qualquer outra, o propósito é sempre a procura de melhores condições de vida, conduziu ao êxodo das populações das zonas rurais para os centros urbanos, deixando para trás os mais velhos. O interior do país ficou, na sua grande maioria, envelhecido, com a consequente redução da capacidade de gestão do território. As políticas florestais, sem esquecer a tristemente célebre declaração de que o eucalipto era o nosso petróleo verde levaram-nos a extensas monoculturas da referida espécie que, sendo adaptada ao clima mediterrânico, é extremamente inflamável. O eucalipto juntou-se a uma outra espécie que já era muito abundante no país: o pinheiro. Ambas as espécies são extremamente inflamáveis e a densidade de plantação e predominantemente em terrenos não aptos para a agricultura, quer por se tratarem de solos pobres ou com acentuadas pendentes, faz com que qualquer ignição, que é apenas uma questão de tempo, tenha sempre consequências enormes uma vez que o combate é difícil.

Por outro lado não nos podemos esquecer que a nossa floresta é acima de tudo composta de pequenas propriedades privadas o que dificulta ainda mais a sua gestão. Dada a composição demográfica, a baixa capacidade de investimento e a difícil gestão do espaço florestal torna toda esta situação complexa. A juntar a tudo isto, bastantes proprietários já não são os originais, sendo neste momento os herdeiros, espacialmente distantes e, na maior parte das vezes, sem lembrança nem conhecimento do terreno e do que está presente.

Mas se tudo isto foi a evolução do lado dos proprietários, como foi a evolução do lado do Estado? Além de não ter sido proactivo na elaboração de regras consentâneas com a gestão do território, nomeadamente do espaço florestal, que conduzissem a uma utilização do mesmo com critérios de produtividade, proteção da biodiversidade e segurança no longo prazo, desativou muitos dos serviços prestados pelo mesmo Estado na supervisão da floresta. A burocratização dos serviços florestais e a transformação dos guardas florestais em vigilantes da natureza, sem renovação dos efetivos, limitados apenas às áreas com estatuto de proteção ambiental e sem grande apoio em equipamento resultou no “abandono” da floresta. Só muito recentemente os sapadores florestais voltaram a ser uma realidade mas ainda assim em número muito reduzido face à área florestal do país. Por último o cadastro rústico está ainda muito atrasado o que dificulta a ação do Estado para convocar os proprietários a gerir o território e a implantar políticas florestais consentâneas com as necessidades do país.

Quais as, possíveis, soluções?

Perante esta mistura inflamável, o que se poderá fazer para garantir uma boa gestão florestal e consequente retorno financeiro, a salvaguarda de vidas e bens e a proteção e incremento da biodiversidade? Bem, se fosse uma solução fácil já teria sido largamente implantada por todo o país. Não é e necessitará sempre de um ingrediente que é cada vez mais escasso: Solidariedade!

Solidariedade intra e inter familiar, porque para protegermos o bem comum teremos sempre que “sacrificar” algum bem particular, que deverá receber sempre a devida compensação (a famosa, mas raramente aplicada com sucesso, perequação). Quantas das pequenas propriedades florestais não são fruto de partilhas mal sucedidas ou, pior, de “guerras” familiares pelas partilhas? E quantas das más decisões não são fruto de cobiça ou inveja de vizinhos, resultantes em iguais “guerras”?

Solidariedade inter geracional porque um processo destes levará muitos anos a ser atingido. Quer porque administrativamente é sempre lento, quer porque qualquer reforma florestal levará sempre imensos anos, quanto mais não seja porque para algumas espécies nobres o crescimento é lento. Quem não se recorda do ditado alentejano “Quem pensa em si planta um eucalipto. Quem pensa nos filhos planta um pinheiro. Quem pensa nos netos planta um sobreiro”. Numa era do instantâneo poderá ser difícil ver para além do imediato.

Solidariedade comunitária: que se lembra dos rebanhos ou manadas comunitárias que ainda existem em algumas aldeias do norte de Portugal. Esses animais, geridos e cuidados por toda a comunidade acabam por desempenhar um enorme papel na gestão de uma floresta, nomeadamente nos terrenos mais próximos das comunidades, quer porque é necessário recolher material lenhoso para as camas dos animais, quer porque o pastoreio acaba por consumir muita matéria vegetal que de outra forma fica no terreno para combustível. A iniciativa das cabras sapadoras, que foi motivo de chacota nas redes sociais, mais não foi do que o reconhecimento de que a exploração de matos e floresta para o pastoreio contribuía imenso para a limpeza dos matos sem grandes custos acrescidos e com a vantagem da produção de carne ou leite e outros negócios potenciais, desde as queijarias, à restauração e outros.

Por último solidariedade intermunicipal porque apesar de um autarca responsável desejar o melhor para o seu município não pode nunca esquecer que não gere o seu espaço isolado dos outros e que as decisões feitas no seu, ou nos municípios vizinhos, no que à gestão do território diz respeito, acabam por afetar todos os municípios, incluindo o seu.

Um desafio!

Mas o que é mais necessário ainda? Comunhão de propósito! É necessário reconhecer que só com uma ideia partilhada e assumida por toda a comunidade será possível proteger tanto os bens, como a biodiversidade e a floresta produtiva. Aqui chegados é importante chamar à atenção ao programa do Fundo Ambiental chamado Condomínio de Aldeia. Este é um programa cujos objetivos são precisamente a reconversão de territórios classificados como matos ou floresta (territórios florestais) noutros usos, e geridos estrategicamente, incluindo agricultura de conservação ou sistemas agroflorestais, com aproveitamento e melhoria da gestão da água através de sistemas de regadio locais, garantindo a segurança de pessoas, animais e bens, o fornecimento de serviços ecossistémicos e o fomento da biodiversidade, tem uma dotação orçamental que varia consoante os anos e que para 2022 foi de 17,5 M€. É aqui que as autarquias podem desempenhar um papel mobilizador e coordenador de todo o esforço popular. Mas é também uma oportunidade para as comunidades se unirem em volta de um projeto comum.

Por tudo o que foi apresentado, apela-se em especial às diferentes comunidades de fé. Solidariedade e comunhão são palavras carregadas de significado espiritual. Porque não essas comunidades desafiarem as suas autarquias a desenharem uma candidatura, a pensarem nos objetivos que protejam a sua aldeia e a biodiversidade à sua volta enquanto contribuem também para a melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes? Porque não trabalharem desde já para uma candidatura em 2023? E porque não através de trabalho voluntário e comunitário, num verdadeiro espírito de partilha e entreajuda implementarem todo o projeto com todos os benefícios que o trabalho em conjunto traz para o fortalecimento das relações interpessoais? Afinal de tudo, amar o próximo é “apenas” o segundo mandamento mais importante de todos! Cuidar do espaço à volta das vilas e aldeias é um ato de amor para com as pessoas, para com Deus e para a criação de Deus, um ato profético porque aponta para uma nova terra e um ato de adoração ao Deus Criador dos Céus e da Terra.